A
Urgência de Ser:
Uma Análise da
Escrita
Autobiográfica em Todos
os Cachorros
são Azuis e
Hospício é
Deus
Graciane Cunha
[Foto original de Maria Dulce de Souza Leão]
1
INTRODUÇÃO O
presente trabalho tem por objetivo analisar a escrita autobiográfica nos
livros Todos os cachorros são
azuis, de Rodrigo de Souza Leão e Hospício é Deus, de Maura Lopes Cançado, buscando
também as motivações para o uso dessa escrita. Em
nossa análise, no capítulo inicial, faremos uma breve abordagem biográfica
dos autores, para nos auxiliar na construção do espaço biográfico de
ambos. A coleta de dados biográficos será efetuada em sites, entrevistas e
trabalhos de pesquisa relacionados aos autores. Para o apoio teórico desse
capítulo inicial, usaremos o livro O espaço biográfico: dilemas da
subjetividade contemporânea, da escritora argentina Leonor Arfuch,
lançado no Brasil em 2010. Para
a contextualização dos dois autores, no primeiro capítulo, inserimos
também um breve estudo da esquizofrenia, destacando o da psiquiatra
brasileira Nise da Silveira, que desenvolveu um importante trabalho de
psicoterapia no hospital onde Maura Lopes Cançado esteve internada. Em
especial, interessa-nos em Nise da Silveira, a sua importante defesa da
humanização dos doentes, reivindicada por Rodrigo e Maura em seus
relatos. Em
nosso segundo capítulo, trataremos de analisar em separado a escrita
autobiográfica em ambas as narrativas escolhidas para o trabalho. Para
nossa análise, nos apoiaremos em diversos teóricos, destacando Philippe
Lejeune e seu ensaio O Pacto
autobiográfico, visando justamente o confronto da autobiografia com a
escrita autobiográfica. Em
nosso terceiro e último capítulo, buscaremos as motivações da escrita
autobiográfica e seus desdobramentos em Hospício é Deus e Todos os cachorros são azuis, apoiando-nos em diversos teóricos,
com destaque para Wander Melo Miranda e Luis Costa Lima. Buscaremos,
também, o confronto entre a escrita dos autores
estudados. Esperamos com nosso trabalho analisar a urgência dos autores em narrar experiências autobiográficas. 2
O ESPAÇO BIOGRÁFICO Algumas
décadas separam Todos os cachorros
são azuis e Hospício é
Deus, e encontramos muitas diferenças na vida dos dois autores
analisados. Para melhor avaliar a questão autobiográfica nas obras de
Rodrigo Souza Leão e Maura Lopes Cançado, foi necessário traçar uma breve
biografia de cada um deles, que nos servisse de apoio na elaboração do seu
espaço biográfico. Como tratado por Leonor Arfuch, a busca por material
biográfico não se dá somente na documentação propriamente dita, portanto,
nos apoiamos em novas mídias para construir um perfil biográfico dos
autores escolhidos. No caso de Rodrigo de Souza Leão, usamos algumas de
suas entrevistas para compor nossa análise, por acreditar na grande
relevância do gênero, algo também destacado por Arfuch em seu
livro: Como gênero
biográfico, mesmo não sendo considerada habitualmente entre os
“canônicos”, que apresentam vidas diversamente exemplificadoras, por
excelência ou defeito, a entrevista é também de educação, aspecto modélico por
antonomásia. O “retrato” que a entrevista brinda irá, então, para além de
si mesmo, dos detalhes admirativos e identificatórios, em direção a uma
conclusão suscetível de ser apropriada em termos de aprendizagem. Falando
da vida ou mostrando-se viver, o entrevistado, no jogo dialético com seu
entrevistador, contribuirá sempre, mesmo sem se propor, para “o acervo”
comum (ARFUCH, 2010, p. 153). O
escritor Rodrigo de Souza Leão nasceu no Rio de Janeiro, em 4 de novembro
de 1965. Teve uma vida considerada normal até a juventude, quando se
manifestaram os primeiros sintomas de sua esquizofrenia. A internet era um
veículo poderoso para o escritor, muito recluso em razão de sua doença.
Ele colaborou em diversas revistas eletrônicas, além de possuir um blogue,
mantido até as vésperas da sua morte, por parada cardíaca, em 2 de julho
de 2009. Em Lowcura, seu
blogue, Rodrigo misturava o caráter ficcional de sua prosa e poesia com
sua vida pessoal. O espaço servia para publicação de seus poemas, trechos
de seus livros e resenhas sobre músicas que ouvia e livros que lia. Além
disso, misturado ao caráter ficcional do blogue, Rodrigo postava fotos da
família, à qual fazia constantes declarações de amor, e divulgava suas
pinturas, outro hobby muito apreciado pelo autor. Em
2008 o autor publicou Todos os
cachorros são azuis, livro em que faz alusão a umas de suas
internações em razão da esquizofrenia. Em 2009, o livro ficou entre os
finalistas do Prêmio Portugal Telecom. Após sua morte, em 2010, foi
lançado o livro póstumo Me roubaram
uns dias contados e houve o relançamento de Todos os cachorros são azuis.
Desde
as primeiras manifestações da sua esquizofrenia, Rodrigo passou por três
internações, a última, quando morreu. Ao tomar conhecimento de que a
autora Glória Perez teria um personagem esquizofrênico em sua próxima
novela, resolveu enviar à autora um exemplar de Todos os cachorros são azuis. Na
estreia da novela Caminho das
Índias, constatou que Tarso, o personagem esquizofrênico, acreditava
que tinham introduzido um chip no seu cérebro. Rodrigo ficou furioso e
escreveu uma carta à autora, acusando-a de plágio. Não adiantaram os
esforços para explicar a Rodrigo que um chip no cérebro era um delírio
comum da esquizofrenia, pois a doença causa paranoias tais como: ter um
chip no cérebro, estar sendo perseguido pela Máfia, dentre outros muitos
casos, que são elementos persecutórios da doença. O autor prosseguiu muito
impressionado com a novela. Após ver uma das cenas de surto do personagem,
em que ele tenta matar o namorado da irmã, Rodrigo passou a temer cometer
o mesmo ato contra seu irmão, com quem dividia o quarto. Assustado, pediu
para ser internado. Foi sua última internação, pois, uma semana depois,
ele veio a morrer por parada cardíaca. Existem especulações de que o autor
teria provocado a própria morte com uma ingestão excessiva de remédios,
mas a resposta Rodrigo levou com ele. A
outra autora a ser analisada possui uma biografia bem mais polêmica. Maura
Lopes Cançado nasceu em 27 de janeiro de 1929, no município de São Gonçalo
de Abaté, no Alto São Francisco, O
ginásio foi cursado em colégio de elite da época, Sacré-Coeur de Marie, em
Belo Horizonte. Aos quatorze anos, Maura decidiu tirar brevê de aviadora,
quando começou um romance com um dos companheiros de curso, com quem veio
a se casar e ter um filho. Mas o casamento terminou um ano depois. Na
mesma época ocorreu também a morte do pai de Maura. Ela, então, tentou
retomar o curso de aviação, mas não conseguiu. Tentou também retomar os
estudos, mas não foi aceita, em razão de sua condição de mulher separada.
Continuou Depois
de gastar parte da herança do pai e cansada da vida de excessos
Trabalhou
também no Jornal do Brasil, colaborando com seus contos para o Suplemento
Dominical. Durante essa época, conviveu com diversos intelectuais
importantes. Mas
foi com Reynaldo Jardim, editor e criador do Suplemento, e com Carlos
Heitor Cony que Maura parece ter mantido uma relação mais estreita. Cony
cita, em artigo publicado pela Academia Brasileira de Letras, sua relação
com Maura e um pouco da trajetória da autora no Suplemento
Dominical: Naqueles
anos, eu também colaborava no "SDJB" e freqüentava o andar ocupado pelo
suplemento, cuja fauna está toda citada nos livros de Maura: Reynaldo
Jardim, Ferreira Gullar, Assis Brasil, Mário Faustino, José Guilherme
Merquior, Carlos Fernando Fortes Almeida, José Louzeiro, Alaôr Barbosa,
Walmir Ayala, Barreto Borges, Oliveira Bastos e outros que agora não
lembro. Reynaldo Jardim foi o criador e era o editor do "SDJB", recebeu um
conto de Maura e ficou entusiasmado, publicou-o na primeira página, na
diagramação competente de Amílcar de Castro. Foi o início de uma série de contos magistrais;
falou-se
Apesar
da proximidade com Cony, é com Reynaldo Jardim, editor do Suplemento, que
Maura parece ter mantido maior contato durante suas crises. Em Hospício é Deus, Maura cita uma
visita do amigo ao hospital psiquiátrico em que estava
internada: “Reynaldo
veio ver-me. Encontrou-me na ocupação terapêutica do Centro. Fiquei muito
feliz quando virei-me para a janela e me deparei com seu rosto simpático,
sorrindo-me do outro lado” (CANÇADO, 1979, p.
57). Durante
a época em que trabalhava no Suplemento, as crises de Maura aumentaram e a
levaram à internação no Hospital Psiquiátrico de Engenho de Dentro.
Durante a internação, Maura escreveu Hospício é Deus, em que narra a
experiência no hospital. No período em que esteve internada, Maura não
perdeu a vontade de trabalhar no Suplemento, fato que não se realizou.
Reynaldo Jardim a ajudou na publicação do livro. A
vida de Maura acabou ganhando tintas trágicas. Em uma das internações
matou uma paciente. Julgada, foi considerada inimputável e condenada a
viver em um hospital de custódia. Na falta de hospitais adequados, Maura
acabou vivendo entre uma prisão e outra. Em 1980, ganhou liberdade
vigiada. Mas voltou às internações, e não escrevia mais. Morreu em 19 de
dezembro de 1993, em razão de uma doença
pulmonar. Maura
Lopes Cançado e Rodrigo de Souza Leão não entraram para os cânones
literários, mas deixaram trabalhos de grande força literária. O que
pretendemos com este trabalho monográfico é atualizar a fortuna crítica da
obra dos dois autores, nos concentrando nos títulos Hospício é Deus e Todos os cachorros são azuis,
analisando ambos pelo perfil autobiográfico. 2.1
A esquizofrenia Os
dois autores que abordamos tinham uma característica comum, além da
escrita autobiográfica, ambos, como já citado, eram esquizofrênicos. E
embora tenham passados por hospitais psiquiátricos em épocas distintas,
trazem para seus relatos opiniões bem similares sobre a experiência nos
hospitais, mostrando que a humanização dos doentes mentais muda a passos
lentos. Segundo
definições que retiramos do Vocabulário da psicanálise, a
esquizofrenia foi um termo cunhado pelo renomado psiquiatra suíço Eugen
Bleuler, em 1911, para designar um grupo de psicoses, das quais se
distinguem três formas que se tornaram clássicas:
a hebefrênica, a catatatônica e a paranoide. A esquizofrenia
apresenta formas bem
distintas de manifestação: Clinicamente, a
esquizofrenia diversifica-se em formas aparentemente muito dissemelhantes,
em que se distinguem habitualmente as seguintes características: a
incoerência do pensamento, da ação e da afetividade (designada pelos
termos clássicos discordância,
dissociação, desagregação), o afastamento da
realidade com um dobrar-se sobre si mesmo e predominância de uma vida
interior entregue às produções fantasmáticas (autismo), uma atividade
delirante mais ou menos acentuada e sempre mal
sistematizada. Finalmente, o caráter crônico da doença evolui segundo os
mais diversos ritmos do sentido de uma deterioração intelectual e afetiva
e resulta muitas vezes em estados de feição demencial, é para a maioria
dos psiquiatras um traço primacial, sem o qual não se pode diagnosticar
esquizofrenia (LAPLANCHE, 1967, p. 214). No
Brasil, podemos destacar entre os estudiosos da esquizofrenia, a psiquiatra Nise da Silveira, que
foi aluna de Carl Jung, também um psiquiatra suíço famoso por seus estudos
do inconsciente e até hoje referência na área. Nise da Silveira formou-se
em 1927 e, desde então, lutou pela humanização do tratamento das doenças
mentais. Ia fortemente contra os tratamentos agressivos da época: a
lobotomia, o eletrochoque e a insulinoterapia. Em 1944, começou seu
trabalho no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, onde Maura Lopes
Cançado esteve internada. Lá, comandava um centro de terapia ocupacional,
onde se concentrava principalmente na pintura. Sua atividade logo tomou
grandes dimensões, pois Nise ficou impressionada com a qualidade artística
das obras: Era surpreendente
verificar a existência de uma pulsão configuradora de imagens sobrevivendo
mesmo quando a personalidade estava desagregada. Apesar de nunca terem
pintado antes da doença, muitos dos freqüentadores do atelier, todos
esquizofrênicos, manifestavam intensa exaltação da criatividade
imaginária, que resultava na produção de pinturas em números incrivelmente
abundante, num contraste com a atividade reduzida de seus autores fora do
atelier, quando não tinham na mão os pincéis (SILVEIRA, 1981, p.
13). O
trabalho de Nise da Silveira ficou bastante conhecido, resultando em
exposições e em grande reconhecimento para sua figura. A psiquiatra reuniu
seus estudos com a terapia ocupacional no livro Imagens do inconsciente, onde faz
um relato de toda a sua experiência com os doentes: O atelier de pintura
me fez compreender que as principais funções da Terapêutica Ocupacional
seria criar oportunidade para que a imagens do inconsciente e seus
concomitantes motores encontrassem formas de expressão. Numa segunda etapa
viriam as preocupações com a ressocialização (SILVEIRA, 1981, p.
14). O
que aqui nos interessa em particular no trabalho de Nise da Silveira é
ressaltar que a esquizofrenia não anula a criatividade de seus doentes,
prova disso é produção literária dos autores com os quais escolhemos
trabalhar. Maura Lopes Cançado cita o Centro Terapêutico em Hospício é Deus e, embora fosse
bastante crítica com o sistema do hospital, gostava de ficar no centro e
reconhecia os esforços de Nise da Silveira para humanizar o tratamento das
doenças mentais. Rodrigo de Souza Leão, se tivesse sido paciente de Nise,
possivelmente figuraria nos estudos de Imagens do inconsciente, pois
gostava muito de pintar e divulgou várias de suas pinturas em seu
blogue. 3
OS AUTORES E SUAS OBRAS As
duas narrativas escolhidas para nosso estudo tratam de urgência. A
urgência de ser em um ambiente de degradação, a urgência de ser para si e
para os outros, e talvez isso justifique o uso da primeira pessoa em ambas
as obras. Maura Lopes Cançado e Rodrigo de Souza Leão viveram em épocas
diferentes e isso poderia trazer visões contrárias sobre o modo de
perceber a vivência nos hospitais psiquiátricos, no entanto as visões de
ambos coincidem. O formato escolhido para as duas narrativas é bem
diferente. Rodrigo escreve um romance curto. Já Maura faz um relato mais
extenso, que inclui uma breve autobiografia, para depois entrar no formato
diarista. Apesar das diversidades, nos interessa o “substrato comum”,
conforme afirma Antonio Candido, ao analisar as diferentes escritas
autobiográficas dos poetas mineiros Murilo Mendes e Carlos Drummond de
Andrade, e do escritor, também mineiro, Pedro Nava: Isto mostra que apesar
das diferenças, eles têm um substrato comum, que permite lê-los
reversivelmente como recordação ou como invenção, como documento da
memória ou como obra criativa, numa espécie de dupla leitura, ou “leitura
de dupla entrada”, cuja força, todavia, provém de ela ser simultânea, não
alternativa (CANDIDO, 2006, p. 65).
É
assim, partindo desse “substrato comum”, que analisaremos Todos os cachorros são azuis e Hospício é Deus, tratando daquilo
que, nas duas obras, nos permite discutir a escrita
autobiográfica. 3.1
Todos os cachorros são
azuis Rodrigo
de Souza Leão teve uma vida bem reclusa. Embora isolado em casa por causa
de sua doença, mantinha-se em contato com o mundo através da internet. E
foi ela, a nossa maior fonte na pesquisa biográfica de Rodrigo, que nos
ajudou a desenhar o perfil do autor para a comparação com o narrador de Todos os cachorros são
azuis. A
narrativa se constrói de forma híbrida, alternando a narração em primeira
e terceira pessoas. Embora a primeira pessoa predomine, muitas vezes há o
uso da terceira. O narrador parece conversar com ele mesmo, como num
duplo. Ou talvez quádruplo, considerando os dois amigos imaginários do
personagem principal, Rimbaud e Baudelaire. Em
Todos os cachorros são azuis
tudo começa com o protagonista engolindo um chip, que será o detonador de
uma crise esquizofrênica, culminando com a internação no hospício. O chip
no cérebro é um viés de paranoias que a esquizofrenia deflagra. Rodrigo
também acreditou ter um chip no cérebro. O chip é o que provoca a crise, o
que gera a mania de perseguição, a sensação de estar sendo controlado por
algo superior: Engoli
um chip ontem. Danei-me a falar sobre o sistema que me cerca. Havia um
eletrodo em minha testa, não sei se engoli o eletrodo também junto com o
chip. Os cavalos estavam galopando. Menos o cavalo-marinho que nadava no
aquário (LEÃO, 2008, p. 13). Apesar
de a narrativa começar com o caso do tal chip, a deflagração dos sintomas
da esquizofrenia no personagem começou bem antes, conforme Leão (2009, p.
14), na adolescência: “Ela diz que tudo começou há uns dez anos, quando eu
achei que havia engolido um grilo”. O
narrador de Todos os cachorros são
azuis joga o leitor dentro de um turbilhão. Por que não dizer que o
leitor também engole um chip e passa a ser controlado pelo autor? E não é
próprio da escrita autobiográfica, segundo Lima (2003), em sua análise
sobre a autobiografia, “uma tentação de impor ao outro uma versão de si
próprio”? O leitor, então, está nas mãos do narrador Rodrigo, esperando
pequenos fragmentos que possam constituir a identidade entre
autor/narrador. O
que encontramos na sequência do caso do chip é uma alternância constante
entre passado e presente, entremeados pelo caso da internação do principal
personagem, longe do que se espera de uma autobiografia tradicional.
Tomando como referência os estudos de Philippe Lejeune sobre autobiografia
em O pacto autobiográfico, não
podemos afirmar logo de início que a narrativa se encaixaria no formato
autobiográfico, pois o texto vertiginoso não nos oferece de pronto a
certeza. Não há o pacto autobiográfico segundo os padrões estabelecidos
por Lejeune (2008, p. 26): “O pacto autobiográfico é a afirmação no texto,
dessa identidade, remetendo em última instância, ao nome do autor escrito
na capa do livro”. No início da história o personagem principal não possui
um nome. Apenas a escrita em primeira pessoa não poderia ser nossa
garantia: As
formas do pacto autobiográfico são muito diversas, mas todas elas
manifestam a intenção de honrar sua assinatura. O leitor pode levantar
questões quanto à semelhança, mas nunca quanto à identidade. Sabe-se muito
bem o quanto cada um de nós preza o próprio nome (LEUJENE, 2008, p.
26). Em
boa parte da leitura de Todos os
cachorros são azuis trabalhamos, então, com a questão da semelhança e
não da identidade. A questão da semelhança, segundo Lejeune, coloca-se
porque podemos encontrar coincidências entre a vida do autor e do
personagem. Para que tivéssemos a identidade afirmada, precisaríamos que o
nome próprio do autor na capa do livro fosse o mesmo do personagem,
estabelecendo então a identidade entre narrador/personagem/autor, fato que
não se dá na narrativa. As informações fornecidas sobre o protagonista vêm
aos poucos. De início, o chip, que o condena à internação. Já no relato
sobre a internação, o protagonista faz uma retrospectiva de sua vida.
Lógico que a estrutura usada não é a tradicional, linear e cronológica. A
vida do personagem principal vai sendo revelada aos poucos, por meio de
pistas. Um dos símbolos que o personagem
principal usa para o resgate de sua infância é um cachorro azul. O
cachorro aparece em várias passagens do livro. E, não por coincidência,
intitula o livro: Eu
costumava andar com um cachorro azul de pelúcia. Meu cachorro não era gay
por ser azul. Só era azul.
(...) O bom do cachorro azul é que ele não crescia e não
morria. O negócio era cuidar para que ele não envelhecesse. (...)
O cachorro azul era minha melhor companhia (LEÃO, 2008, p. 15-17). O
cachorro azul será usado pelo protagonista como símbolo de sua infância.
Durante a pesquisa biográfica sobre a vida de Rodrigo de Souza Leão,
acabamos esbarrando em uma fotografia do autor, publicada em seu blogue.
Nela ele segura um cachorro azul e posa lendo o próprio livro. A
fotografia é um interessante jogo de referências. Philippe Lejeune (2008,
p. 24) defende que “a autobiografia não comporta graus, é tudo ou nada” e
afirma que analisar a escrita autobiográfica não é procurar pistas
extratextuais.
Mas como ficar impune a essa brincadeira
curiosa do autor? Não estaria ele mesmo, com a fotografia, criando um jogo
de ficção e realidade? Ou poderíamos ler a fotografia como uma afirmação
do autoficcional? Se a própria narrativa de Todos os cachorros são azuis já
está sujeita a essa busca por semelhanças, o autor instituiria então uma
afirmação da autoficção. Se, conforme Sylvia Molloy (2003, p. 22),
“a imagem de si existe como impulso que governa o projeto
autobiográfico”, a foto poderia ser a imagem do autor projetada por ele
mesmo, num misto de referências autobiográfica e ficcional, numa
autofiguração debochada. Logicamente, essa busca por pistas,
incluindo fotografias, só é possível por Rodrigo ser um escritor
contemporâneo e que se autopromovia na internet. É o espetáculo de si. E
nós, como leitores, não podemos ignorar essa ferramenta pop da escrita,
muito discutida pelos teóricos atuais, principalmente porque ajuda na
construção da imagem do autor: Os
blogues têm sido uma ferramenta bastante utilizada por escritores, com
variadas finalidades: seja como uma espécie de oficina criativa, espaço de
experimentação, contato inicial com leitores, divulgação da produção
textual para possíveis leitores, seja como lugar de debates, divulgação de
publicações e eventos literários, agenda cultural, sem esquecer os
procedimentos de autoficcionalização que contribuem para a formação da
persona do autor (VIEGAS, 2008, p.
159). Dentro
da análise de Ana Cláudia Viegas, podemos situar Rodrigo. O autor
utilizava a ferramenta com bastante assiduidade para divulgar sua poesia,
pintura e opiniões sobre literatura e música. E, no ponto que mais nos
interessa e onde cabe a comparação com Todos os cachorros são azuis, para
se autoficcionalizar e também para se autobiografar. Assim como a citada
foto, existem no blogue fotografias da família de Rodrigo. Além
disso, o autor publicava trechos de seus livros, inclusive da obra
analisada por nós. No livro, constantemente, o narrador faz referências à
sua família: Meu pai
aparece num dos dias de visita. Foi ele quem me internou, mas eu não tenho
ódio no coração. Gosto deste homem. Ele me dá um beijo (LEÃO, 2008, p.
20). Em
relação à sua família, os sentimentos do protagonista dividem-se entre
vergonha e medo: Ele diz
que sairei daqui quando estiver melhor. Movimento-me em sua direção e dou
um beijo em sua face. Será o beijo de Judas? Será que trairei meu pai em
minha loucura? E se agora viessem dois homens e me crucificassem e me
colocassem de cabeça para baixo? Será que a cruz ia aguentar toda a banha?
(LEÃO, 2008, p. 20). O
relato será, para o protagonista, uma forma de prestar contas com o
passado e consigo. Uma forma de defesa perante o ambiente de abjeção em
que vive e cujas únicas cores parecem surgir dos remédios que toma:
Eu já
defequei em mim mesmo. Já mijei na cama no primeiro dia do hospício para
não sair de onde estava. Esta é uma vida cheia de atos abjetos. Uma vida
cheia de medos (LEÃO, 2008, p. 40). Há
no protagonista o desejo da liberdade, o desejo de sair do ambiente de
degradação: Quando
vão me tirar daqui, enfermeira? A
primeira liberdade é sair do cubículo. A segunda liberdade é andar pelo
hospício. Liberdade, só fora do hospício. Mas a liberdade mesmo não
existe. Estou sempre esbarrando em alguém para ser livre. Se houvesse
liberdade o mundo seria uma loucura com todo mundo (LEÃO, 2008, p.
23). Além
do desejo de libertação, outro ponto a se destacar no livro é a relação do
narrador/protagonista com os amigos imaginários, Baudelaire e Rimbaud.
Lógico que não despropositalmente os nomes dos amigos imaginários eram
nomes de grandes escritores, e estaria aí um forma do protagonista se
inserir entre os grandes cânones literários. Dentro do ambiente do
hospício e sem o seu cachorro azul, os amigos imaginários são uma forma de
escape para o protagonista: Vocês
devem estar se perguntando se meu relacionamento com Rimbaud era sexual.
Apesar de saber que Rimbaud era apaixonado por mim, eu não dava muita
corda, para não ferir o coração do poeta. Afinal, eu só queria amizade de
homens. Rimbaud se comportava muito bem e jamais saía do meu lado. Era um
amigo fiel, um escudeiro. (...) Tinha um outro amigo, o Baudelaire, que
aparecia só de vez A
solução para a solidão do protagonista, ao recorrer a esses amigos
imaginários, é fácil de entender: com o sentimento de abandono pelo mundo,
ele mesmo não poderia se abandonar, então, recorre à própria mente, para
sobreviver no ambiente inóspito: O que é
a solidão? É viver sem obsessões. Mas na vida às vezes a gente tem que
escolher entre esmurrar a ponta de uma faca ou se deixar queimar no fogo
(LEÃO, 2008, p. 52). Além
da constante reflexão do protagonista sobre a própria condição, é
importante destacar na narrativa as constantes citações do universo pop: novelas, funk, músicas
conhecidas e de grandes autores, está tudo reunido num grande
mosaico. O
relato da internação no hospício é marcado também por repetições. O
protagonista está sempre afirmando que engoliu um chip, que engoliu um
grilo. Ele faz, também, uma descrição de alguns doentes do hospital,
fixando-se mais intensamente no “Temível Louco”, um doente que se destaca
dos demais e por quem o livro ganha ares de trama policial. O assassinato
de “Temível Louco” vai agitar o hospício e o protagonista será um dos
suspeitos: Quem
matara Temível Louco? Foi você. Ele tinha medo de você. Você vai ser
crucificado. Temível tivera um ataque cardíaco. Ninguém viu. Mas tinha um
louco que repetia que era eu o culpado. Foram infiltrados entre nós
detetives A e detetives B para ver quem matou Temível. Eu era inteligente
e já tinha sacado que os polícias estavam infiltrados (LEÃO, 2008, p.
42). Podemos
ler a inclusão desse assassinato no relato, e o fato de o protagonista ser
o acusado, como apenas uma manisfestação de delírios persecutórios, fator
relacionado à esquizofrenia. E que o próprio autor, Rodrigo, dizia
sofrer. Após
a internação o personagem volta para casa. Já em seu lar, não tem mais a
companhia dos amigos imaginários Rimbaud e Baudelaire e, de novo, volta-se
para seu cachorro azul. O protagonista abandona os amigos ou, fora do
hospício, não eram mais necessários? E se deslumbra com a nova liberdade,
tão desejada: Quando
cheguei em casa nunca havia ouvido tamanho silêncio no meu quarto. Havia
recebido alta há poucas horas. Dessa vez o nosso carro não foi seguido por
ninguém. Não via Rimbaud e Baudelaire há alguns dias. Quando se têm
companhias tão fortes assim, e se tem uma vida em comum, sentimos falta
dos amigos. Meu cachorro azul estava lá, encardido pelo tempo, contando
muitas histórias. Andava
pela casa e me sentia um ser livre (LEÃO, 2008, p.
68). Sua
vida convencional, porém, vai durar pouco. Durante um sonho, receberá uma
iluminação que o fará criar uma nova seita, o Todog, em que os
participantes possuem uma forma especial de se comunicar, como um código
ou uma língua especial. A seita, então, ganhará muitos adeptos e ele
termina sendo perseguido para acabar com a seita. É preso e, quando
finalmente consegue a liberdade, um membro da seita o
mata. É necessário destacar que a
liberdade perseguida pelo personagem é sempre impedida por algo externo.
Os outros perseguem sua liberdade e ela parece inalcançável, como já
citado. E aí nos vem a indagação sobre o depois. O autor, então,
responde-nos na única passagem de todo o texto que contém o nome de
Rodrigo: Princilimpimpotus
todog todog todog e grilos e eletrodos e casa devastada e cachorro azul e
bolo de laranja e policiais B e Lembra-vovó e eu vou pra Paracambi se eu
não comer, vou pro caju e Procurador brilhantina e Xuma e agora o agora.
Dia D. Hora H. A bomba e seu cogumelo de endorfinas explode em meu corpo
baionetado e com a química dos anjos. A ogiva. E depois, Rodrigo? O que
fez do depois? Aqui onde as nuvens se encontram, levo sempre um choque
maior do que os que levei no hospício (LEÃO, 2008, p.
78). Teríamos, então, com esse trecho a afirmação do pacto autobiográfico. O nome do personagem e o nome do autor. Não mais a questão da semelhança, mas a questão da identidade afirmada. 3.2
O Hospício é
Deus Hospício
é Deus
foi escrito por Maura Lopes Cançado durante sua internação no hospital
psiquiátrico Gustavo Riedel, em Engenho de Dentro, Rio de Janeiro. No
início da narrativa é feita uma breve retrospectiva autobiográfica da vida
da autora. Está lá a vida na fazenda onde
nasceu, os colégios em que estudou e o tempo
que passou com a elite burguesa de Belo Horizonte antes de ela vir morar
no Rio. A inclusão de uma breve autobiografia parece uma forma de Maura
prestar contas a si mesma, antes de entrar no diário propriamente dito. E
é na infância que a narradora/personagem vai buscar as causas da sua
loucura: Não
creio ter sido uma criança normal, embora não despertasse suspeitas.
Encaravam-me como uma menina caprichosa, mas a verdade é que já era uma
candidata aos hospícios onde vim parar (CANÇADO, 1979, p.
17). Outra
questão a ser destacada do início da narrativa é o amor de Maura pelo pai,
que vai perpassar toda a narrativa: Aos
quinze anos vi-me com o casamento desfeito, um filho e sem pai,
sustentáculo de todos os meus erros — meu grande e único amor (CANÇADO,
1979, p. 24). É
também nesse relato inicial que Maura fala da paixão por leitura e pelo
mundo do faz-de-conta. Ela gostava de inventar histórias absurdas:
Possuindo
muita imaginação, costumava inventar histórias exóticas a meu respeito.
Aos sete anos, estudando numa cidade próxima à fazenda, onde morava minha
irmã Didi, mentia para minhas colegas: “— Sou filha de russos, tenho uma
irmã chamada Natacha, e um dos meus tios nasceu na China, durante uma
viagem dos meus avós” (CANÇADO, 1979, p. 21). A
julgar pelos depoimentos da educadora Vera Brant e de Carlos Heitor Cony,
que relatam que a autora contava histórias escabrosas, Maura levou o
hábito de inventar histórias absurdas por toda vida. Talvez em razão de
sua doença, ou pelo prazer de se autoficcionalizar. Embora
por muitas vezes presa num mundo imaginário para fugir da realidade, Maura
não esconde em seu relato seus temores. Dentre eles, o medo da morte e o
medo de sua condição de doente mental. O medo da morte está na vida de
Maura desde a infância. E com ele o medo de Deus, a entidade com a qual
nunca teve uma boa relação. Maura não acreditava em Deus, porque o
acreditava impiedoso e capaz de matar: Amá-lo
como, impiedoso e desconhecido, me espionando o dia todo? Ia matar-me
quando quisesse, mandar-me para o inferno. Amar a Deus? Deus, meu pai?
(...) Minhas relações com Deus foram as piores possíveis — eu não me
confessava odiá-lo por medo da sua cólera. Mas a verdade é que fugia-lhe
como julgava possível — e jamais o amei. Deus foi o demônio da minha
infância (CANÇADO, 1979, p. 20). É
interessante, a partir dessa informação, analisar o título do livro, que é
retirado do início das anotações do diário de Maura, na passagem em que
ela cita a chegada ao hospício: Estou de
novo aqui, e isto é — Por que não dizer? Dói. Será por isto que venho —
Estou no hospício, Deus. E hospício é este branco sem fim, onde nos
arrancam o coração a cada instante, trazem-no de volta e o recebemos:
trêmulo, exangue — e sempre outro. Hospício são flores frias que se colam
em nossas cabeças perdidas em escadarias de mármore antigo, subitamente
futuro — como o que não se pode ainda compreender. São mãos longas
levando-nos para não sei onde — paradas bruscas, corpos sacudido se
elevando incomensuráveis: Hospício é não se sabe o que, porque Hospício é
Deus (CANÇADO, 1979, p. 28). Se
hospício é Deus para Maura, podemos concluir que o hospício é a
materialização de todos seus temores, uma morte O que me
assombra na loucura é a distância — os loucos parecem eternos. Nem as
pirâmides do Egito, as múmias milenares, o mausoléu mais gigantesco e
antigo, possuem a marca de eternidade que ostenta a loucura (CANÇADO,
1979, p. 26). É
com a consciência da loucura que Maura se coloca em muitas partes do
diário: Sou
“Alice no País do Espelho”. Quanta coisa franzida na minha percepção. Até
mesmo o ar parece-me contrair-se frenético. É um estado passageiro — mas
que me deixa em dúvida: onde está a verdade? E as coisas que toquei,
percebi, senti, amei, quando criança? — minha cabeça é um ônibus
desenfreado (CANÇADO, 1979, p. 108). Se
a Alice de Lewis Carol entra num mundo surreal e precisa jogar uma partida
de xadrez para tornar-se a rainha e, à medida que o jogo se desenrola,
encontra-se com várias personagens estranhas, o jogo de Maura está na
escrita autobiográfica. Dentro do ambiente amedrontador do hospício e em
razão da própria opressão que lhe provocava a loucura, Maura buscaria na
sua escrita autobiográfica uma autointerpretação: A
autobiografia, mesmo se limitada a uma pura narração, é sempre uma
auto-interpretação, sendo o estilo o índice não só da relação entre aquele
que escreve e seu próprio passado, mas também o projeto de uma maneira de
dar-se a conhecer o outro (MIRANDA, 1992, p. 30). Norteados
por essa ideia de autointepretação é que lemos Hospício é Deus. Aqui,
diferentemente de Todos os
cachorros são azuis, o pacto autobiográfico defendido por Lejeune é
feito logo no início do livro e podemos perceber a relação de identidade
entre Maura autora e Maura personagem e narradora. Não trabalhamos com a
questão de semelhança, mas de identidade. A assinatura do nome próprio nos
dá essa certeza. É
interessante analisar que Maura dividiu a sua escrita em duas partes: no
já citado relato autobiográfico inicial e na escrita diarista. A escrita
diarista excluiria, então, a possibilidade de uma autobiografia segundo
muitos especialistas: Por ser
uma escrita essencialmente privada, cuja especificidade é o segredo, o
diário exclui de antemão o pacto entre o autor e o leitor (MIRANDA, 1992,
p. 34). Mesmo
com possível descarte do pacto entre o autor e o leitor, não parece a
teoria aplicável ao caso de Maura, pois ela trata, na narrativa
autobiográfica inicial, de fazer o pacto com o leitor. Outra questão que
nos parece interessante destacar é que Maura parecia imaginar a publicação
do diário: Aqui
estou de novo nesta “cidade triste”, e é daqui que escrevo. Não sei se
rasgarei estas páginas, se as darei ao médico, se as guardarei para serem
lidas mais tarde. Ignoro se tenho algum valor, ainda no sofrimento
(CANÇADO, 1979, p. 31). Em
outros momentos, afirma a importância do diário para ela e nega ser ele um
relato íntimo: Meu
diário é o que há de mais importante para mim. Levanto-me da cama para
escrever a qualquer hora — escrevo páginas e páginas — depois rasgo mais
da metade, respeitando apenas, quase sempre, aquelas em que registro fatos
ou minhas relações com as pessoas. (...) Será deveras lastimável se esse
diário for publicado. Não é absolutamente um diário íntimo, mas tão apenas
o diário de uma hospiciada, sem sentir-se com direito a escrever as
enormidades que pensa, suas belezas, suas verdades (CANÇADO, 1979, p.
122). A
própria declaração de Maura mostra a ambiguidade de sua escrita. Não
parece que o formato diarista almejava o segredo, pelo contrário, parece
ter sim a intenção de formar a imagem de Maura e denunciar as barbaridades
cometidas contra os doentes mentais (1979, p. 31): “Com o que escrevo,
poderia mandar aos ‘que não sabem’ uma mensagem do nosso mundo sombrio”.
Maura, às vezes, parece estar se dirigindo a um leitor imaginário:
(...) E
o médico que riu, não terá sua psicosezinha? Diriam se me lessem: — O
pobrezinho do médico-bonito não riu. Ela tem mania de perseguição. E me
acrescentariam mais o rótulo de paranóica (CANÇADO, 1979, p. 40).
E
recordando uma citação de Lejeune (2008, p. 23): “O autor não é só uma
pessoa. É uma pessoa que escreve e publica”, seríamos inocentes em
desconsiderar que a mulher oprimida que escreve um diário durante uma
internação psiquiátrica é também a autora Maura Lopes Cançado, dona de uma
linguagem hábil. O estado de opressão não mata a autora, mas a revela, ou
manifesta nela o desejo de se revelar. Nós, então, imaginaremos Maura a
partir do que ela nos oferece em seu texto: O autor
se define como sendo simultaneamente uma pessoa real socialmente
responsável e o produtor de um discurso. Para o leitor, que não conhece a
pessoa real, embora creia em sua existência, o autor se define como a
pessoa capaz de produzir aquele discurso e vai imaginá-lo, então, a partir
do que ele produz (LEJEUNE, 2008, p. 23). A
discussão sobre o papel do autor é claramente aplicável à narrativa de Hospício é Deus, mas não se
aplicaria tão bem a Todos os
cachorros são azuis, pois com Maura, temos a identidade declarada e
com o texto de Rodrigo, ficamos com a suposição de que o relato faz parte
de uma experiência pessoal do autor. A
escrita diarista de Maura Lopes Cançado parece fugir também do compromisso
com o tempo. Maura trabalha muito com a memória. E mais do que o
compromisso com os eventos diários, a memória é o que se destaca,
entremeada por acontecimentos que marcam sua internação. Maura vai
marcando os eventos diários com questões pessoais. No seu diário ela cita
a relação que teve com intelectuais na época em que trabalhava no Jornal
do Brasil, e em especial com Reynaldo Jardim, editor do Suplemento
Dominical do Jornal do Brasil, que prefaciou o seu
livro. Um
ponto importante a se destacar é a relação de Maura com Doutor A, médico
que a atendeu durante sua internação no hospital. Nessa relação entre
médico e paciente o que se estabelece inicialmente é uma postura crítica
de Maura. Entretanto, um pouco adiante, o médico é destacado por ela como
quem a mantém sã no hospital. Ela se mostra apaixonada, embora não perca a
postura crítica. Em uma das partes do diário de Maura, num gesto de
ousadia, confessa sua paixão por Doutor A. O médico não lhe corresponde e
vai confrontá-la com o amor que ela sentia pelo pai: —
Papai? — Seu pai. Você só ama ainda a seu
pai, buscando-o em todos os homens, principalmente se a protegem e você os
admira. Foi o que aconteceu com R. —
Mentira (comecei a chorar). —
Verdade. E passa a odiar qualquer homem que não ame “apenas” como seu pai
a amava. Para você é como um incesto, Maura (CANÇADO,1979, p.
98). Maura
não gosta da atitude do médico, temia que a análise a fizesse perder a
capacidade de escrever: Meus
problemas são inúmeros e um dos mais graves é este: medo de me deixar
analisar e não conseguir mais escrever. Tenho ouvido falar a esse
respeito. Van Gogh, Gauguin, Rimbaud, Dostoievski e outros tantos não
foram jamais analisados. Mas como eu seria feliz se me transformasse numa
criatura normal e conseguisse um marido. (CANÇADO, 1979, p.
98). O
trecho citado mostra que Maura valorizava muito seu ofício de escritora.
Era para ela uma forma importante de se expressar, mesmo disputando espaço
com a sua loucura e até fazendo parte dela. É interessante notar que no
trecho destacado acima Maura se compara com grandes artistas que de alguma
forma tiveram relação com a loucura. Uma das grandes decepções de Maura
narrada no diário é não conseguir voltar a trabalhar no Jornal do Brasil,
onde exercia seu ofício de escritora. Quando estava tudo acertado para ela
voltar ao jornal, Reynaldo Jardim voltou atrás e essa atitude provocou
profundo desgosto em Maura. O
diário de Maura não se encerra com sua saída do hospício, o último relato
data de 7 de março de 1960. Como Maura nomeia seu diário como o primeiro,
fica a dúvida se haveria mais relatos em outro diário. Em algumas
pesquisas, lemos que os manuscritos foram perdidos, em outras, que o
segundo diário nunca existiu. O que podemos concluir da escrita de Maura é
que ela é híbrida. Assim como a de Rodrigo, parece-nos que a escrita
autobiográfica conduz à autoficcionalização. 4
A MOTIVAÇÃO DA ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA Maura
Lopes Cançado e Rodrigo de Souza Leão trouxeram para suas narrativas a
urgência de contar sobre o mundo que os cercava. Em comum, podemos ver nas
duas escritas a marca da doença mental levada para a
literatura. Desde
que o Ocidente converteu a individualidade em valor, a impaciência de
viver aumentou a impaciência de contar e a narrativa real ou fingida da
própria vida se tomou como um tipo de história, mais confiável que o
enredo das novelas (LIMA, 2007, p. 455). Dentro
de nossa análise, podemos ler a impaciência de Maura e Rodrigo não como a
de viver, mas a de contar. Para ambos era preciso narrar, e para isso se
valeram da escrita autobiográfica, porque há pressa em manifestar a
individualidade. Se para a sociedade é um senso comum considerar que todos
os loucos são iguais, para eles se faz necessário o reforço da
individualidade. Parece
não haver motivo suficiente para uma autobiografia, se não houver uma
intervenção, na existência anterior do individuo, de uma mudança ou
transformação radical que a impulsione ou a justifique (MIRANDA, 1992, p.
30). Nesse
trecho, buscamos a interpretação para a motivação dos dois autores pelo
apelo à escrita autobiográfica. Rodrigo de Souza Leão sofreu uma grande
mudança em sua vida quando foi diagnosticado com esquizofrenia. E teria
sido uma internação em que foi preciso usar força policial para levá-lo o
que parece tê-lo motivado a começar a escrever Todos os cachorros são
azuis: Cheguei ao Pinel e
minha família optou por me internar numa clínica particular. O hospício
que havia ficado internado pela primeira vez em 1989. Fiquei internado por
vinte dias. Quando voltei a minha casa, dois dias depois, no meu quarto
escurecido por doses de Litrisam, comecei a escrever Todos os
cachorros...
(KRAPP, entrevista, 2009). O
trecho acima, retirado do site
que reúne a fortuna crítica sobre Rodrigo, nos mostra um pouco da
motivação do autor para o uso da escrita autobiográfica em Todos os cachorros são azuis. É
lógico que nem tudo no livro é autobiográfico, mas, sendo a narrativa
entrecortada e não-linear, quase um delírio, Rodrigo parece ter dado à sua
escrita o seu maior elemento autobiográfico, a esquizofrenia. A doença de
Rodrigo é classificada como um dobrar-se em si mesmo, e essa leitura pode
ser feita em Todos os cachorros são
azuis: o personagem principal dobra-se em muitos, divide-se em amigos
imaginários e a própria narrativa dobra-se em si, intercalando tempos e
fatos ficcionais à vida pessoal de Rodrigo. Na mesma entrevista citada,
quando questionado se usou em Todos
os cachorros são azuis a inspiração de seus próprios delírios, Rodrigo
responde: A esquizofrenia
tem diversos níveis. Cada louco é um louco. Na minha experiência não tive
muitas alucinações auditivas e visuais. Mas vivo com sensações
persecutórias. Acho que estão me perseguindo e que vou ser assassinado.
Convenhamos que isso não traz tranqüilidade. O que tenho é atualmente
chamado pelos psiquiatras de distúrbio delirante. Para o livro coloquei um
protagonista que via e ouvia alucinações. Aproveitei experiências do meu
irmão Bruno. Ele é bipolar e já teve uma psicose séria. Só voltou a si
graças ao eletro-choque. Ficou abobado, mas agora está normal. Misturei
também as duas internações que existiram na minha vida (KRAPP,
entrevista, 2009). A
busca de elementos extratextuais para encontrar a motivação da escrita
autobiográfica de Todos os
cachorros são azuis não é necessária no relato de Maura Lopes Cançado,
porque um dos elementos que perpassam Hospício é Deus é sua urgência em
relatar sua condição (1979, p. 156): “Só sou autêntica quando escrevo”.
Residiria na busca por autenticidade a necessidade de escrever na primeira
pessoa, só a identidade declarada mostraria a veracidade de escrita de
Maura Lopes Cançado para os outros. Não podemos esquecer, entretanto, que
a escrita diarista não compõe uma autobiografia e Maura, assim como
Rodrigo, usaria a escrita autobiográfica para dar forma ao seu
relato. O
diário, considerado um gênero de escrita íntima, é feito de dualidades.
Muitas vezes, em seu diário, Maura nega ser ele um relato íntimo, e afirma
estar apenas narrando fatos. Em outras passagens Maura também nega uma das
maiores características do diário, que seria o compromisso com o
tempo: Um
domingo qualquer — não sei a data, mas é domingo. Amanhã, se me lembrar
corrigirei todas as datas erradas. Ou, eliminarei todas as datas. Não tem
importância: “Todos os cabelos são mais ou menos verdes, mais ou menos
verdes”, segundo Sainte-Beuve (CANÇADO, 1979, p.
169). Partindo
do trecho destacado, contrapomos a reflexão de Lejeune sobre o
diário: Há um
abismo entre o diário tal qual é lido (por um outro, ou até, depois, por
si mesmo). O diário, que muitas vezes se apresenta como uma luta contra o
tempo (fixar o presente etc. — preservar a memória), se fundamenta de fato
na abdicação prévia diante do tempo (atomizado, despedaçado, reduzido ao
instante). Há, na verdade, muitas concepções possíveis de tempo. E diário
reflete (mas só depois, na leitura) tanto a mais ingênua (nem dominada nem
desejada) adesão ao presente, quanto uma certa abdicação (LEJEUNE, 2005,
p. 285). Maura,
mesmo fugindo do compromisso com o tempo, estaria, de qualquer forma,
presa a ele. 5
CONCLUSÃO Em
razão do estudo sobre a escrita autobiográfica e suas motivações em Todos os Cachorros são azuis e
Hospício é Deus, norteamos nosso projeto. Para a análise dessa
escrita, julgamos necessário contrapô-la ao que seria uma autobiografia
propriamente dita, usando assim a análise do pacto autobiográfico
defendido pelo teórico Phillip Lejeune, dentre outros teóricos citados na
introdução desta pesquisa, que nos serviram de
sustentação. Para
a análise da escrita autobiográfica de Todos os cachorros são azuis,
fizemos uma análise da narrativa e buscamos elementos extratextuais para
melhor avaliar a escrita autobiográfica de Rodrigo de Souza Leão. Com
isso, investigamos o blogue mantido pelo autor e fizemos um estudo das
entrevistas que ele concedeu, por acreditar na relevância do gênero para a
construção do seu espaço biográfico. Concluímos em nossa pesquisa que o
escritor usa a escrita de si para levar para Todos os cachorros são azuis um
pouco da sua experiência com internações psiquiátricas. O que vemos no
livro é um misto de experiência autobiográfica com autoficcionalização,
resultando numa narrativa híbrida. O próprio autor expôs isso em uma das
entrevistas que usamos para nossa pesquisa. A sua escrita seria uma forma
de vencer as dificuldades da esquizofrenia, mas ao mesmo tempo, levar a
sua doença para seu fazer literário, imprimindo inclusive em sua narrativa
entrecortada um quê alucinatório. Lê-lo seria experimentar um pouco da
esquizofrenia. Outro
elemento a ser destacado na pesquisa sobre Rodrigo é que a sua escrita
autobiográfica e jogo de autoficionalização se estenderia para além do
limites do livro. O autor também mantinha esse jogo no blogue que
alimentava na internet. Lá, num misto de referências, brincava com a
imagem do Rodrigo autor e do Rodrigo personagem, criando fronteiras tênues
entre o autobiográfico e o ficcional. Já
na análise da escrita autobiográfica de Maura Lopes Cançado o processo foi
um pouco diferente, acreditamos que no relato autobiográfico inicial de Hospício é Deus, Maura faz o pacto
autobiográfico, o que nos permite ler a narrativa com a identidade
afirmada de Maura autora/personagem/narradorra. Partindo dessa questão,
nos concentramos mais nos elementos do texto, fazendo pouco uso de
elementos extratextuais. O formato usado pela autora também se aproximaria
mais do formato convencional de uma autobiografia, se não o é de todo, é
porque Maura transformou seu livro num híbrido, misturando autobiografia
com escrita diarista. Na
escrita diarista Maura se perde em datas, mas deixa transparecer sua
necessidade de falar sobre si, numa autoanálise que serviria para ela como
uma forma de sobreviver perante o ambiente de abjeção do hospício. Uma
escrita em terceira pessoa não serviria ao relato da autora, mesmo havendo
a negação em várias partes de seu diário da escrita íntima, para a autora
seu diário seria apenas um relato do que via no hospício. Maura também
nega em sua escrita diarista estar presa ao tempo, fato comum quando se
trata de tal escrita, mas em nossa análise, vemos que o fato pode ser
relativizado, pois a escrita diarista é sempre uma escrita no presente do
autor, mantendo-a assim presa ao tempo. No
confronto das motivações de ambos os autores para o uso da escrita
autobiográfica, percebemos que o elemento comum seria a urgência de ser,
manifestar a individualidade. Se ambos se encontravam num ambiente
degenerado e por vezes se consideravam degradados em razão da doença
mental, a escrita de si seria uma forma de sobressair a tal questão,
manifestando e afirmando sua individualidade. Mas o processo de escrita
autobiográfica não exclui o ficcional, que tanto Maura quanto Rodrigo
inserem em suas narrativas, diferenciado-se assim das
autobiografias. 6
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Graciane
Cunha (Rio de Janeiro/RJ). Formada
em Letras (Português/Literaturas) pela Universidade Gama Filho, com
especialização em Literatura Brasileira pela UERJ. Atualmente, trabalha na
Escola Parque (Unidade Barra da Tijuca) como mediadora de leitura da
biblioteca do colégio e professora, ministrando oficinas de leitura que
visam a ampliação cultural dos alunos. Além disso, é professora na ONG
Instituto Reação, desenvolvendo oficinas de produção de leitura e escrita
com alunos moradores da região da Rocinha, São Conrado e Vidigal. Edita o
blogue Muito Livro [ http://muitolivro.wordpress.com/
]. |
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